MARINA BOCCALANDRO

Cadeira 13

Discurso de posse

Ilustríssimo Senhor Professor Doutor Arrigo Leonardo Angelini, presidente da Academia Paulista de Psicologia.

Senhores Acadêmicos.

Colegas que hoje estão sendo empossados.

Professora Doutora Aidyl Pérez-Ramos, acadêmica e viúva do meu antecessor Professor Doutor Juan Pérez-Ramos.

Meu esposo Mihail, minha filha Fernanda e meus familiares.

Prezados colegas, ex-alunos, ex-clientes, amigos, amigas e os demais presentes.

Este é um momento muito importante da minha vida. Em abril deste ano completei 50 anos de trabalho na área da Psicologia Clínica e não poderia ter recebido presente mais valioso para minhas bodas de ouro do que, ter sido eleita para uma Cadeira desta nobre e conceituada Academia, onde encontro alguns dos meus mais importantes professores, colegas e amigos, inclusive da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde atuo como docente. Com eles tenho mantido relações de afeto e respeito, como também recebido estímulo para prosseguir com o meu trabalho, como profissional, pesquisadora e docente. Admira-me nesta Academia a maneira aberta de aceitação de seus membros, sejam eles de diversas áreas ou de vários enfoques doutrinários, respeitando assim a pluralidade de concepções para compreender o ser humano. Percebo-a como detentora da memória da Psicologia, de maneira imparcial, procurando registrar os acontecimentos e idéias tais como aparecem no percurso histórico dessa ciência, enriquecidas pelas contribuições originadas no Brasil em especial no Estado de São Paulo. Nós, os profissionais que hoje tomamos posse, temos, como modelo, o trabalho corajoso e de vanguarda desses expoentes, e a responsabilidade de continuarmos a tarefa por eles iniciada, buscando sempre estarmos abertos aos novos saberes que irão se acrescentar na construção da ciência psicológica. Gostaria especialmente de agradecer à Professora Doutora Aidyl Pérez-Ramos, minha grande incentivadora e também ao Professor Doutor Esdras Vasconcellos, que foram os Acadêmicos que, juntamente com a Professora Doutora Denise Ramos, indicaram meu nome para ocupar uma das Cadeiras vagas na Academia. Sou imensamente grata a todos os Titulares que me elegeram e também quero agradecer as palavras carinhosas e elogiosas da minha ex-professora, orientadora do mestrado, amiga e grande incentivadora do meu trabalho, nos últimos 25 anos, a Acadêmica Professora Doutora Yolanda Cintrão Forguieri (Cadeira nº1), como também a Professora Doutora Mathilde Neder (Cadeira nº14), minha orientadora no doutorado. Sem o apoio dos Titulares, em especial dos citados, não estaria neste momento tomando posse da Cadeira 13 desta Academia. Reverencio, neste momento, o Patrono e os antecessores da citada Cadeira.

[SLIDE 1] O Patrono, o Doutor Renato Kehl, foi um dos grandes expoentes do desenvolvimento, no Brasil, da Eugenia e ciências afins. Brasileiro, nasceu em Limeira, em 1889 e faleceu em São Paulo, em 1974. Suas contribuições foram tão importantes que transcenderam a outros países da América Latina e também da Europa. Formado pela Faculdade de Farmácia de São Paulo, e posteriormente pela Faculdade de Medicina do Brasil, no Rio de Janeiro, dedicou-se inicialmente ao exercício da clínica médica e mais tarde à área da saúde pública, contribuindo para a organização do Serviço de Educação Sanitária do Estado de São Paulo. Era possuidor de extensa cultura humanística e destacado interesse científico em diferentes áreas do saber. Em todas as atividades que exerceu ao longo de sua vida, deixou transparecer o profundo respeito pelo ser humano. Publicou 30 livros, alguns deles traduzidos para o espanhol, e muitos artigos em jornais e revistas de caráter científico. A partir do enfoque básico de natureza eugênica, estendeu seus interesses a uma variedade de assuntos de caráter psicológico, ético, social e filosófico. Todas as suas publicações, científicas ou de divulgação, continham um colorido comum, que era o bem-estar do homem. Suas obras, especificamente as da área psicológica, traziam sempre idéias inovadoras e de vanguarda. Entre elas podemos citar: “A Interpretação do Homem”, “A Psicologia da Personalidade” e “A Conduta”. Além disso, enriqueceu o enfoque psicológico humanístico com uma grande variedade de artigos sobre orientação familiar, terceira idade, saúde, aconselhamento psicológico e os princípios éticos, extensíveis à atuação dos psicólogos, na atualidade. Apesar da grande quantidade de publicações e da colaboração com entidades associativas profissionais nacionais e internacionais, sempre participou com entusiasmo, de movimentos em prol da saúde mental da população, tendo sido membro ativo do Conselho Consultivo da Liga de Higiene Mental e do Conselho de Assistência e Proteção ao Menor. Por toda sua brilhante carreira, foi escolhido como Titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil e da Academia Nacional de Medicina do Peru. Por todo seu legado profissional e seu pioneirismo na ciência psicológica, Renato Kehl foi distinguido, por essa Academia, como Patrono da Cadeira 13.

[SLIDE 2] O seu primeiro ocupante foi o Professor João Souza Ferraz, cuja posse ocorreu em 1980 e terminou em 1988, por ocasião do seu falecimento. Souza Ferraz nasceu em 1905, também em Limeira, como o patrono Renato Kehl. Formado em Psicopedagogia e Literatura, dedicou-se à docência e à clínica psicológica voltada especificamente à Psicologia da Criança e do Adolescente, à Psicologia Educacional e à Psicologia Fenomenológica. Em sua orientação teórica, identificou-se com a tradição de William James e foi continuador de suas idéias em nosso meio. Além disso, através de uma concepção humanista, buscou harmonizar os conhecimentos sobre comportamento humano com a literatura, a educação e a filosofia. O Professor Souza Ferraz, como era conhecido, sempre voltado aos problemas humanos, foi autoridade reconhecida em muitos países, haja vista as distinções e honrarias que recebeu pelos seus méritos, tanto no Brasil como na França, Itália e Argentina. Ele deixou-nos um legado riquíssimo como psicólogo, filósofo, literato, poeta, educador, jornalista e mestre.

[SLIDE 3] Antes de falar do meu antecessor, Professor Doutor Juan Pérez-Ramos, gostaria de compartilhar com os que me ouvem uma passagem muito significativa para mim, que ocorreu por ocasião da posse da Profa. Dra. Denise Ramos nesta academia. Ao sairmos do almoço por ela oferecido aos amigos e membros deste sodalício, encontrei-me com o Dr. Juan e ele me disse: “Você vai entrar para a Academia.” Lembro-me que olhei com surpresa para ele, por esta afirmação tão inesperada e respondi-lhe: “Eu ainda estou terminando meu doutorado”, ao que ele retrucou “Mas você vai pertencer um dia a nossa Academia”. Até aquele momento, nunca havia passado pela minha cabeça em nenhum instante essa possibilidade. Somente com o passar dos anos, na medida em que fui crescendo como profissional e que minha tese de doutorado foi agraciada com o prêmio “Menção Honrosa” desta Academia, é que essa possibilidade começou a criar forma dentro de mim. Palavras proféticas, e o pesar que sinto é que neste momento ele não está aqui para comemorarmos juntos a sua previsão e o que eu considero mais incrível é estar ocupando a Cadeira 13, por ele deixada.

Discorrendo sobre o Doutor Juan, [SLIDE 4] que foi o segundo ocupante da Cadeira 13, desde 1989, começamos por dizer que ele nasceu na cidade Los Llanos de Aridane, da Ilha La Palma, no Arquipélago Canarino (Espanha), [SLIDE 5] “Fortes vínculos nos une com o Brasil, historicamente”, como dizia, com freqüência, Dr. Juan: “Basta lembrar que em 1570, nas proximidades desta ilha, após um descanso em Tazacorte (um dos portos da Ilha) foram sacrificados pelos corsários calvinistas, 40 jesuítas, denominados “Os 40 Mártires do Brasil”. Fato extraordinário, hoje ainda lembrado na história de ambos os países. Naturalizou-se brasileiro nos anos 70, considerando nosso país como sua segunda pátria. Durante quase cinqüenta anos, trabalhou em diferentes países, primeiro na Venezuela, depois nos Estados Unidos, novamente na Venezuela e finalmente no Brasil, a partir dos anos 70. Sua vida foi marcada por intensos acontecimentos. Desde muito jovem foi recruta da Guerra Civil Espanhola e posteriormente da Segunda Guerra, compreendendo um total de sete anos. Contudo, apesar de todos os percalços decorrentes de intensos bombardeios, Dr. Juan encontrava tempo para estudar e ler. Assim foi sua educação básica, continuando depois com os cursos universitários que realizou. Por suas habilidades galgou sempre novos e melhores postos que buscou no Novo Mundo. O Doutor Juan Pérez-Ramos foi uma expressão viva do que se entende por um verdadeiro cientista e detentor de uma relevante formação multidisciplinar. Entre suas conquistas profissionais, podemos citar alguns títulos, diplomas e atuações importantes como: Perito Mercantil pela Universidad de La Laguna, Espanha, revalidado pela Faculdade de Economia da Universidade Central da Venezuela; [SLIDE 6] Psicólogo pela Universidad Católica Andrés Bello, da Venezuela, título revalidado pela Universidade de São Paulo; Doutor em Psicologia [SLIDE 7], título obtido na referida universidade do citado país e revalidado pela UNESP; Livre-Docente pela UNESP e Especialista em Psicologia Organizacional, título obtido nos Estados Unidos. Trabalhou na Venezuela, no Caribbean Geodetical Center, especializando-se em cálculos geodésicos de grande precisão, tendo posteriormente tomado parte no quadro de especialistas da Creole Petroleum Corporation, e desempenhando funções também na Central Mundial da Standard Oil de Nova Jersey, em Nova Iorque. Na Espanha, participou de projetos das Nações Unidas, em prol dos acometidos de deficiências. No Brasil, tomou parte, como Perito, do convênio básico de intercâmbio cultural entre Brasil e Espanha, desenvolvendo ações de caráter oficial na área da Psicologia Organizacional. Desempenhou funções de docente na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis, São Paulo, e no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Atuou também na formação de pesquisadores na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

[SLIDE 8] Em 1964, casou-se com uma colega de profissão, a Profa. Dra. Aidyl Pérez-Ramos, acadêmica aqui presente. Essa união resultou em uma parceria profícua, feliz e duradoura durante 42 anos.

[SLIDE 9] Na Academia Paulista de Psicologia, eleito em 1989, foi assíduo participante das suas reuniões, colaborando efetivamente, entre outras atividades, para implementação do projeto “O Legado da Psicologia para o Desenvolvimento Humano”, sob os auspícios do Ministério da Cultura. Participou da diretoria, sendo eleito para tesoureiro por vários mandatos, tendo deixado em dia as finanças da Academia, incluindo as do Projeto MinC. Sempre trabalhou com afinco para o desenvolvimento deste sodalício e para o progresso de uma ciência psicológica baseada nos mais elevados valores humanos até o fim de sua vida. Seu posicionamento humanista, dentro da Psicologia, foi complementado por estudos e pesquisas sobre Psicologia Positiva, principalmente nos últimos anos, tendo escrito vários artigos sobre esse tema. No período final de sua vida, dedicou-se a estudos sobre física teórica, tendo deixado muitos trabalhos inconclusos sobre a história da ciência e já havia começado a escrever a sua autobiografia. Nos seus relatos, desta última contribuição, destacava que desde criança possuía um espírito investigador, uma enorme fome de saber, vencendo as mais difíceis provas. Assim foi caminhando em sua auto-biografia. Recebeu várias honrarias internacionais por seu trabalho e entre elas podemos destacar “O Botão de Ouro”, concedido pela Creole Petroleum Corporation e a inclusão do seu nome no quadro de personalidades ilustres da Comunidade Autônoma das Canárias. [SLIDE 10] Em 1999 foi-lhe outorgado, em um ato solene, um quadro moldurado em ouro nos Los Llanos de Aridane, sua terra natal. [SLIDE 11, 12, 13 e 14] Numa entrevista concedida ao Diário de Avisos, jornal de sua terra, quando lhe foi perguntado por quais motivos gostaria de ser lembrado pelas gerações futuras, sua resposta foi a seguinte: “A morte não é senão a cessação da vida física, mas não da continuidade existencial no mais além, já que, instintivamente, a maior parte dos seres racionais, tende a conceber a sobrevivência, num sentido espiritual, como fenômeno metafísico mutável. É à luz dessa idéia, que eu, como ser humano, recordado ou não pelas gerações futuras, incluo-me no desejo e na esperança de uma sobrevivência espiritual transcendente. E isso é tudo que posso dizer.

Pelo que pudemos verificar, nesses destaques sobre a vida e obra do Patrono da cadeira e de meus dois antecessores, é possível vislumbrar a minha responsabilidade ao substituí-los. O que constato na carreira dessas personalidades, é um profundo respeito pelo ser humano, uma incansável busca pelo saber, posições pioneiras e de vanguarda frente à ciência psicológica. Apesar do desafio com que me defronto, sinto-me especialmente confortável seguindo essa linha de trabalho, com a qual me identifico plenamente.

Quando cursava a faculdade de Psicologia, inspirada pelo Dr. Petho Sandor, meu professor de Psicologia Profunda, fui introduzida no conhecimento da Psicologia Analítica de Jung e estusiasticamente passei a estudar, freqüentar cursos, e depois de formada, atender meus clientes dentro desse enfoque teórico. Aliado a esse conhecimento, sempre me interessei pelo uso de técnicas corporais, relaxamento, exercícios respiratórios, terapia artística, meditação e trabalhos com a imaginação e utilizava-as na minha prática como psicoterapeuta. Até que um dia, ao ler um livro sobre Psicossíntese, de Roberto Assagioli, encontrei o que chamo de “família espiritual”, isto é, o grupo de psicólogos que compartilham comigo da mesma concepção de homem, como um ser espiritual e fazem uso das técnicas que havia aprendido ao longo da minha vida como profissional. A partir daí, alicerçada na Psicologia Analítica, passei a complementar minha formação com uma Especialização em Psicossíntese, e nos últimos 15 anos tenho me dedicado a estudar e a escrever sobre vários assuntos, baseados nessa abordagem, sem esquecer minhas raízes na Psicologia Analítica de Jung.

Na Psicossíntese, acredita-se que o homem não é o seu corpo físico, seu corpo emocional e seu corpo mental: o homem é o seu Self, o seu Eu Superior. O homem é uma Centelha Divina, um Centro de Energia Pura, é o Si Mesmo. O corpo físico, assim como as emoções e a mente, são os nossos instrumentos de relação com o mundo. Precisamos deles para nos expressarmos, trocarmos experiências, afetos, adquirirmos valores, mas não somos esses corpos. Somos mais que isso.

Aceitando essa visão de homem, não podemos conceber uma psicologia centralizada apenas nos aspectos negativos, isto é, no Inconsciente Inferior. É necessário promovermos também o Inconsciente Superior, depositário das qualidades positivas, das virtudes, da criatividade, da arte, da beleza, para que possamos, como psicólogos, colaborar na evolução não só do indivíduo, mas também da coletividade.

O futuro da humanidade certamente depende do crescimento individual, e da nossa disposição em abrir nossos próprios canais interiores, a fim de que cada um de nós possa tornar-se um instrumento para expressão de qualidades transpessoais em nossa vida diária.

Estamos vivendo numa idade da comunicação e, embora nunca tenhamos possuído tal poder coletivo de estabelecer harmonia entre os seres humanos, não temos conseguido obter sucesso. Na Psicossíntese acredita-se que somos nós, como indivíduos, que mantemos o poder real em nossas próprias mãos: o poder de mudar a nós mesmos.

Cada ser humano, que possamos ajudar a reconhecer, aceitar e trazer para a sua vida diária seu potencial positivo, tem a possibilidade de modificar a si mesmo e o seu entorno, contribuindo para a melhoria do planeta.

Esse talvez seja o grande poder da Psicologia, que está estendendo cada vez mais o seu campo de atuação, saindo dos consultórios e espalhando-se pelas escolas, hospitais, esporte, trânsito, poder judiciário, empresas, fábricas, trabalhos comunitários, e tantas outras áreas, onde já encontramos o psicólogo presente.

Hoje o que vemos são manchetes alarmantes, nos jornais, revistas, TV e em todos os meios de comunicação, sobre os efeitos do aquecimento global e da poluição. Os cientistas apontam que esse desequilíbrio trará fome, sede e morte para os seres vivos. A biodiversidade estará fatalmente ameaçada. Está, em cada um de nós, a possibilidade de reverter essa situação e colocar nossa Mãe Terra dentro da harmonia que está sendo perdida. A Psicologia tem um grande papel nessa tarefa e nós não podemos, como profissionais, eximir-nos.

A sobrevivência do planeta não deve nos preocupar, porque mesmo que a raça humana quase desapareça, ou seja totalmente extinta, por seus atos de depredação, o planeta é capaz de tomar conta de si próprio e sobreviver a nossa insanidade, mesmo que para isso leve milhares de anos. A questão que nos concerne, como psicólogos, diz respeito à sobrevivência de nossa espécie, como a conhecemos.

Estou firmemente convencida de que isto será possível mediante o despertar do ser humano para a responsabilidade inerente às infinitas possibilidades de suas inteligências e virtudes. Responsabilidade e liberdade de reconhecê-las e desenvolvê-las pelo poder da Vontade.

Com certeza a Psicologia pode dar a sua contribuição para esse processo. Aqui fica o meu apelo para olharmos com carinho, esse problema e descobrirmos como cada um de nós poderá ajudar, independente da linha teórica que sigamos. Acredito ser isso possível e assim poderemos realizar o nosso trabalho em prol da melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e do planeta.

Antes de encerrar, quero agradecer a presença de todos, a acolhida carinhosa dos colegas, a jornada de vida compartilhada com familiares, amigos, clientes, alunos e repetir aqui o que faço todos os dias: agradecer a possibilidade de viver, aprender e crescer. Partindo da minha crença na evolução da alma, tenho como meta deixar esta vida como um ser humano melhor do que aquele que aqui chegou. Quero principalmente agradecer ao Grande Arquiteto do Universo que me concedeu a graça da minha caminhada e de estar aqui neste momento único.

Muito obrigada.